O Seráfico Pai Francisco, desde o início de sua conversão, dedicou especialíssima devoção e veneração a Cristo crucificado, devoção que até à morte ele inculcara a todos por palavras e exemplo. Quando em 1224 Francisco abismava em profunda contemplação no Monte Alverne, por um admirável e estupendo prodígio, o Senhor Jesus imprimiu-lhe no corpo as chagas de sua paixão. O Papa Bento XI concedeu à Ordem dos Frades Menores que todos os anos, neste dia, celebrasse a memória de tão memorável prodígio, comprovado pelos mais fidedignos testemunhos (Próprio da Família Franciscana do Brasil, Vozes, 1999, pág.253)
Das Fontes Franciscanas “Dois anos antes de entregar sua alma ao céu, estando no eremitério que, por sua localização, tem o nome de Alverne, Deus lhe deu a visão de um homem com a forma de um Serafim de seis asas, que pairou acima dele com os braços abertos e os pés juntos, pregado numa cruz. Duas asas elevavam-se sobre a cabeça, duas abriam-se para voar e duas cobriam o corpo inteiro. Ao ver isso, o servo do Altíssimo se encheu da mais infinita admiração, mas não compreendia o sentido. Experimentava um grande prazer e uma alegria enorme pelo olhar bondoso e amável com que o Serafim o envolvia. Sua beleza era indizível, mas o fato de estar pregado na cruz e a crueldade de sua paixão atormentavam-no profundamente. Levantou-se triste e alegre ao mesmo tempo, se isso se pode dizer, alternando em seu espírito sentimentos de gozo e de padecimento. Tentava descobrir o significado da visão e seu espírito estava muito ansioso para compreender o seu sentido. Estava nessa situação, com a inteligência sem entender coisa alguma e o coração avassalado pela visão extraordinária, quando começaram a aparecer-lhe nas mãos e nos pés as marcas dos quatro cravos, do jeito que as vira pouco antes no crucificado” (1Cel 94).
“Francisco era um fiel servidor de Cristo. Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundancia do que nunca a suavidade da contemplação celeste, o ardor dos desejos sobrenaturais e a profusão das graças divinas. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado pelos arroubos de uma profunda compaixão n’Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte. Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, dir-se-ia, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido voo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevavam-se por cima da cabeça, duas outras estavam abertas para o voo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo” (Lm VI,1)
Sentido desta Festa para nós, hoje
Homilia da Festa no Monte Alverne (Itália) feita por Frei José Rodríguez Carballo, Ministro Geral OFM – 17 de setembro de 2010
Homilia da Festa no Monte Alverne (Itália) feita por Frei José Rodríguez Carballo, Ministro Geral OFM – 17 de setembro de 2010
Textos bíblicos: Gl 6, 14-18; Lc 9, 23-26
Há poucos dias celebramos a Festa da Exaltação da Santa Cruz. Hoje, em todo o mundo franciscano e particularmente nesta santa montanha do Alverne, santificada pela presença do Senhor em forma de serafim e pela de Francisco, o Estigmatizado do Alverne, celebramos o mistério da Cruz que se fez visível na carne do Poverello, realizando-se em seu corpo, de forma visível, aquilo diz o Apóstolo: «De agora em diante ninguém me moleste, pois levo sobre meu corpo os estigmas de Jesus» (Gl 6,17). Paulo portava em seu corpo as cicatrizes das tribulações suportadas por Cristo (cf. 2Cor 6,4-5; 11,23ss), Francisco leva nas mãos, pés e lado os estigmas da Paixão de Cristo.
As biografias do Santo nos narram como sucedeu o prodígio de todo singular dos Estigmas. Próximo à festa da Santa Cruz, dois anos antes de sua morte, o Seráfico pai subiu a esta montanha, para iniciar a quaresma de jejum que costumava praticar em honra do Arcanjo São Miguel. Desejando ardentemente conhecer a vontade de Deus, para configurar-se todo a Cristo, abriu por três vezes o livro dos evangelhos em nome da Santíssima Trindade, e encontrando sempre a narração da Paixão do Senhor Jesus, orava insistentemente sentir em seu corpo as dores do Crucificado. Teve, então, uma visão que produziu nele um grande gozo e uma profunda dor ao mesmo tempo: era o Senhor em forma de serafim crucificado que lhe manifestava que havia de ser transformado totalmente na imagem de Cristo crucificado. Terminada a visão apareceram na carne deste amigo de Cristo os sinais da Paixão do Senhor: os cravos que traspassaram suas mãos e seus pés, e uma ferida em seu lado (cf. LM XIII, 1ss).
Francisco nos ensina que não podemos ser todo para os outros se não se é todo para o Senhor, e não se pode ser todo para o Senhor se a pessoa não se encontra constantemente consigo mesma. O Poverello nos ensina a necessidade de ter na própria existencia um “projeto de vida ecológico”, diríamos hoje, no qual o compromisso a favor dos outros vá acompanhado do “vacare Deo”, como diziam os antigos, dedicar tempo a Deus, e dedicar tempo a nós mesmos. Francisco, verdadeiro “mendicante de sentido”, em busca permanente do homem e em busca permanente de Deus e de sua vontade, como nos faz ver São Boaventura, buscava incessantemente encontrar-se consigo mesmo e por isso buscava e amava a solidão.
O homem é certamente um “ser social”, criado “para a relação”, mas a experiencia demonstra que só quem pode viver sozinho também sabe viver plenamente as relações. Só quem não teme descer na própria interioridade sabe enfrentar o encontro com a alteridade, com Deus e com os outros. Ao contrário, a incapacidade de interiorização, de habitar a própria vida interior, se converte também em incapacidade de criar e de viver relações sólidas, profundas e duradouras com Deus e com os outros. Certamente que nem toda solidão é positiva: existem formas de fugir dos outros que são patológicas, como o isolamento e o medo da alteridade. Mas entre estas patologias e o ativismo desmedido, a solidão é equilíbrio e harmonia, força e firmeza. Quem assume a solidão como fez Francisco, é quem mostra o valor de confrontar-se consigo mesmo, de reconhecer e aceitar como tarefa própria o ser ele mesmo. Por outro lado, se alguém, como Francisco tem como objetivo buscar a vontade de Deus (cf. LM XIII, 1), não pode buscá-la refugiando-se no “grupo”, no anonimato da multidão, e nem também na fuga solipsista da clausura de si mesmo. Talvez a solidão é um dos maiores sinais do amor: para nós mesmos, para Deus, e para os outros.
A solidão é espaço de unificação do próprio coração e de comunhão com Deus e com os outros. Quando a solidão nos leva ao encontro de nós mesmos, então é purificação das relações que no contínuo “comércio” das pessoas correm o risco de ser insignificantes, e, para nós cristãos, é também um lugar de comunhão com o Senhor. Ao comentar o texto de João 5,13, onde se diz que o homem curado não sabia quem o havia curado, já que Jesus havia desaparecido no meio da multidão, Santo Agostinho escreve: «É difícil ver Jesus em meio à multidão; necessitamos a solidão. Na solidão, de fato, se a alma tem cuidado, Deus se deixa ver. A multidão é ruidosa, para ver a Deus necessitas o silencio». Por outro lado, a solidão é o crisol do amor: as grandes relações humanas e espirituais não podem deixar de cruzar a solidão. Certamente, o cristão, como Jesus, deve encher a solidão com a oração, com a luta espiritual, com o discernimento da vontade de Deus, com a busca de Seu rosto. Francisco em tudo isto se nos apresenta como um verdadeiro mestre, tendo sido um verdadeiro discípulo de Cristo.
De fato, o Cristo, em quem dizemos que cremos e que dizemos amar o encontramos constantemente em lugares afastados para orar, buscando a solidão para viver a intimidade com o Abba e para discernir sua vontade. Aquele que viveu na cruz a plenitude da intimidade com Deus conhecendo o abandono de Deus, recorda ao cristão que a solidão é mistério de comunhão, e nos ensina que a máxima solidão manifestada na cruz é mistério de amor, a maior manifestação do amor do Pai para conosco: «tanto amou Deus ao mundo que deu a seu Filho único» (Jo 3,16); a maior manifestação do amor de Jesus pela humanidade: «como nos amou e se entregou a si mesmo» (Ef 5,2).
«Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo e tome sua cruz cada dia, e siga-me» (Lc 9,23), escutamos no Evangelho de hoje. Encontramos nestas palavras um compendio da vida cristã, o espelho da Palavra com o qual o discípulo deve conformar seu próprio rosto (cf. St 1,22-25). Como cristãos, nossa vida deve levar impressas os traços de Jesus, o Filho crucificado por amor. Contemplando «ao que transpassaram» (Jo 19,37), a cruz se converteu num selo de pertença a Deus em Jesus (cf. Ap 7,2ss; Ez 9,4). Levar a cruz cada dia é fazer-se carregador de nosso mal, é morrer cotidianamente por Cristo, vivendo para Ele, até poder dizer: «com Cristo estou crucificado:e não vivo eu, senão que é Cristo quem vive em mim» (Gl 2,20). Tomar a cruz significa sentir-se crucificado com Cristo, ser partícipe da Paixão do Senhor Jesus, sentir que somos dele e que já não nos pertencemos mais a nós mesmos. Diz Bento XVI: Para levar a pleno cumprimento a obra da salvação, o Redentor continua a associar a si e a sua missão homens e mulheres dispostos a tomar a cruz e segui-lo. Igual a Cristo, assim também para os cristãos levar a cruz não é opcional, mas uma missão que se deve abraçar com amor. Em nosso mundo atual, onde parecem dominar as forças que dividem e destroem, Cristo continua oferecendo a todos seu claro convite: quem quiser ser meu discípulo, renegue o próprio egoísmo e carregue comigo a cruz. Invoquemos a intercessão do Estigmatizado do Alverne para que o Senhor nos conceda ir com decisão atrás Dele, conformar-nos à Paixão de Cristo e ser partícipes de Sua Ressurreição
Vocabulário
Serafim – criaturas celestes mencionadas unicamente em Is 6,2-6. Na hierarquia angélica, os serafins são os anjos do segundo coro. São os anjos que nos inflamam de amor por Deus. Daí São Francisco ser chamado de “seráfico pai”, pois ele leva-nos todos a amar a Deus. Dizia ele: “Devemos amar o amor daquele que nos amou” (2C 196)
Alverne – o monte alverne ergue-se majestoso no centro da Itália. Eleva-se até 1283 metros acima do nível do mar em seu pico mais alto conhecido pelo nome de La Penna. O Santuário de La Verna, erguido para celebrar a experiência maravilhosa da estigmatização de Francisco de Assis, está a 1128m de altura. Para o monte Alverne Francisco e seus companheiros sempre iam para rezar e estar a sós com Deus.
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