Carta do Ministro Geral da OFM, Frei José Rodriguéz Carballo, por ocasião da canonização de Camila Batista de Varano, OSC
Caríssimos irmãos e irmãs,
O Senhor lhes dê a paz!
O Senhor lhes dê a paz!
Aos 19 de fevereiro de 2010, Bento XVI, em consistório público, inscreveu no Catálogo dos Santos uma irmã nossa, a Clarissa Camila Batista de Varano. A canonização acontecerá em São Pedro no dia 17 de outubro de 2010.
Com verdadeira alegria, do mosteiro em que Camila Batista de Varano viveu e onde repousa o seu corpo, onde me encontro com os confrades do Definitório para frequentar por alguns dias a escola de Camila, desejo comunicar-lhes esta “boa notícia”, que fará felizes todas as Clarissas: o carisma clariano é capaz de produzir frutos de santidade em cada época! E isto acontece no ano de 2010, ano que, no caminho de preparação para a celebração do VIII centenário dos inícios de vida de Santa Clara em São Damião, é dedicado à contemplação. Uma “boa notícia” que torna orgulhosas as Clarissas de Camerino, fiéis guardas do corpo da nova santa e da sua memória.
Mas é um acontecimento que envolve também a nós, Frades Menores. A canonização da Beata Camila Batista de Varano é a demonstração de que a “plantinha” do pai São Francisco continua a alegrar o seu coração com novos e vigorosos rebentos. Além disso, cada etapa do itinerário espiritual da Beata foi acompanhada pelos Frades Menores – Domingos de Leonissa, Pacífico de Urbino e Pedro de Mogliano – figuras excelentes da “Observância franciscana”, porta-vozes daquele fervor de renovação que marcou a Ordem franciscana e que acabou por contagiar também Camila Batista na sua ação de renovação espiritual, reintroduzindo, nos mosteiros por ela fundados, a Regra de Santa Clara.
Enfim, a canonização de Camila Batista de Varano, como conclusão das celebrações do VIII centenário da fundação da Ordem dos Frades Menores, recorda-nos que a santidade constitui a fundamental via para dar significatividade à nossa vocação e missão.
Não é o caso agora de focalizar a sua vida, a sua experiência humana e espiritual, mesmo porque neste sentido existe uma abundante literatura. Esta minha carta-comunicação quer somente estimular um maior conhecimento desta extraordinária mística, sobretudo através da leitura de seus escritos, pelo menos os mais importantes, como Vita spirituale (Autobiografia) e I dolori mentali de Gesù nella sua Passione.
Breves notas biográficas
Camila de Varano nasceu em Camerino em 1458, filha de Júlio César de Varano. É filha ilegítima, mas predileta do pai e da mulher Giovanna Malatesta, que foi mais do que mãe. Dos seus numerosos escritos, especialmente, se deduz que Camila tenha recebido uma sólida formação humanística, favorecida por uma inteligência aguda, por um caráter forte e tenaz e pela vontade de viver e divertir-se.
Depois de ter resistido por vários anos ao chamado do Senhor, no dia 4 de novembro de 1481, Camila ingressou no Mosteiro das Irmãs Pobres de Santa Clara em Urbino, assumindo o nome de Batista. Aos 14 de janeiro de 1484, deu vida a um novo Mosteiro em Camerino, onde introduziu a Regra de Santa Clara. Em 1502, para fugir do assédio da sua cidade por parte de César Bórgia, Ir. Batista refugiou-se em Atri, retornando depois a Camerino nos inícios de 1504. Depois de ter fundado os Mosteiros das Clarissas em Fermo (1505-1506) e em São Severino Marche (1521-1522), morreu em Camerino no dia 13 de maio de 1524.
Aos 7 de abril de 1843, o Papa Gregório XVI reconheceu o culto público, atribuído a ela desde tempos antiquíssimos, e declarou-a Beata. Aos 8 de abril de 1891, Leão XIII aprovou as atas do Processo, em vista da canonização, e no dia 4 de fevereiro de 1892 os seus escritos. Aos 17 de outubro de 2010, Bento XVI a proclamará Santa.
Um coração tenso
Camila Batista de Varano viveu radicalmente o ideal evangélico de São Francisco e de Santa Clara, mas foi marcada fortemente também pela nova sensibilidade cultural e espiritual que estava surgindo com o renascimento, pelas circunstâncias trágicas da sua família e da sua cidade, pela trama complexa da vida da Ordem dos Frades Menores e das Irmãs Pobres de Santa Clara. Todas estas circunstâncias plasmaram o seu espírito que, dócil à ação da graça divina, deu vida a uma experiência evangélica que incidiu profundamente no tempo em que viveu Camila Batista.
O segredo desta “transfiguração”? A sua vida e o seu caminho de conversão são profundamente determinados pelo encontro com o Crucificado. Como não lembrar-se do encontro de São Francisco com o Crucificado em São Damião? Como não acolher o convite de Santa Clara a contemplar “o mais belo entre os filhos dos homens”, pendurado na Cruz? Mas é a própria Camila Batista a nos guiar com os seus escritos: “a memória da Paixão de Cristo é como uma arca dos tesouros celestes, uma porta que permite entrar e degustar o glorioso Jesus e uma perfeita mestra de todas as artes espirituais, uma fonte inexaurível de água viva, um poço profundíssimo dos segredos de Deus... Quem quiser estar livre de toda impureza e ter um sinal da glória futura e da beatitude... procure esta doce memória da Paixão de Cristo, como o apóstolo Paulo, que portava continuamente os estigmas da Paixão em seu corpo”.
Tudo teve início no longínquo 1466 (ou 1468), quando Frei Domingos de Leonissa exortou os fiéis, na pregação da Sexta-feira santa, a recordarem a Paixão de Cristo. Entre os tantos que o escutaram, uma menina de 8/10 anos, Camila de Varano, o tomou a sério, até apegar-se a Cristo pobre e crucificado com todo o seu ser, deixando-se transfigurar por esta presença de vida, pelas dores, alegrias, aspirações e profundas contradições da sua época e da sua Ordem.
A santidade de Camila Batista envolve-nos, como Irmãs Pobres de Santa Clara, como Frades Menores e como mulheres e homens do nosso tempo, porque torna visível a tensão do coração humano, o seu difícil caminho de conversão e, ao mesmo tempo, a fecundidade da conformação à cruz de Cristo: na santidade desta mulher singular, a luz da ressurreição, da plenitude do homem em Cristo, resplende através dos séculos.
Atualidade de Camila Batista de Varano
Camila Batista revela-se, antes de tudo, como uma mulher capaz de aceitar o desafio da existência, encarnando uma “paixão pela vida”, vivida como busca incessante da verdade e da liberdade. Não foi passiva, não sofreu simplesmente os condicionamentos familiares ou políticos que teriam podido aprisionar a sua existência. Soube ser protagonista original da sua vida, construindo a sua humanidade em um dinamismo de liberdade voltado à busca genuína dos valores.
Em uma época caracterizada pelo relativismo moral e pela superficialidade intelectual, em que os modelos sociais e midiáticos são tão possessivos e dominantes, necessitamos hoje do exemplo de um espírito livre e valente que saiba viver com coragem a sua originalidade.
Camila Batista apresenta-se aos nossos olhos como uma figura extraordinariamente atual. Ela vive em uma época só aparentemente diferente da nossa, feita de lutas e de guerras, de dramas e de ódio, mas também de grandes impulsos humanos, artísticos e espirituais.
Através da canonização da Beata Camila Batista, a Igreja realiza um gesto profético através do qual aponta à humanidade inteira, a todos os batizados e à família franciscana esta figura de mulher verdadeiramente evangélica, sinal eloquente de conversão realizada, de resposta coerente ao Evangelho e à vocação a que todo homem é chamado.
Uma luz para a humanidade
O que foi a vida de Camila Batista, senão um incessante, comovido e apaixonado silêncio que escuta aquela Palavra da cruz que revela a plenitude da vida e do amor? O que foi a sua experiência, senão um contínuo imergir-se no mistério pascal em que se pode ler e re-encontrar o próprio sofrimento e descobri-lo habitado, remido, transfigurado?
Ela desejou que a sua vida fosse uma contínua sexta-feira santa. O sentido deste desejo está na mensagem que Camila Batista entrega à humanidade inteira: no sofrer humano está escondida a luz e a presença do Ressuscitado que transfigura cada dor e preenche toda solidão.
Contemplando a paixão, de Cristo, Camila Batista contempla a paixão do homem de cada tempo e de cada lugar, descobre e indica a cada um o sentido, a luz e a força que a humanidade incessantemente invoca.
Na nossa época, marcada por uma profunda crise econômica que fez emergir uma significativa urgência ética no agir e no pensar, Camila Batista indica uma via a seguir: colocar dentro da história os valores evangélicos do dom e da gratuidade. O verdadeiro contemplativo, de fato, não se subtrai à responsabilidade de mergulhar-se na história, mas sabe que é enviado a tornar presente o rosto do Deus contemplado, através da restituição dos dons de graça recebidos.
À humanidade perdida por causa da emergência educativa, evidenciada pelo difuso mal-estar dos jovens e pela pobreza de pontos de referência, Camila Batista indica a urgência de educadores, mestres e testemunhas credíveis. Os seus escritos nos oferecem diversas figuras de pais na fé, sobretudo Frades, que acompanharam e guiaram o seu caminho e, contemporaneamente, nos revelam a sua extraordinária capacidade pedagógica. Camila Batista, como mãe espiritual e como guia sábia, sabe fazer-se modelo de vida e canal da graça, como ela própria relata: “É necessário ser “vaso”, antes que “canal”. Por quase vinte anos, esta tua mãe foi “vaso”, isto é, procurou guardar, conter a graça em si, depois, como “canal”, a difundiu e escreveu para outros”.
Na época da comunicação de massa, da Internet e do progressivo desenvolvimento dos sociais network, assistimos, quase impotentes, a um singular paradoxo: de uma parte, de fato, emerge uma incontenível necessidade de comunicação e de informação em tempo real; de outra parte, se desenvolve um crescente medo nos confrontos com o diferente, estigmatizado na figura do estrangeiro que busca às nossas portas, com uma consequente elevação das fronteiras e dos muros que impedem, a acolhida e a partilha. Neste contexto, Camila Batista revela-se mestra de diálogo, entendido como necessidade humana, vital e cotidiana. O Tu de Jesus Cristo contemplado e amado conduziu-a ao tu dos irmãos e das irmãs, fazendo dela uma mulher extraordinária de relação. O diálogo é, de fato, o tecido, o estilo e a categoria predominante do seu modo de escrever e de sua experiência mística.
Em uma sociedade líquida, cética quanto ao ideal da fidelidade, capaz de assumir somente empenhos temporários e condicionados, Camila Batista provoca-nos com a sua capacidade de fazer escolhas definitivas e radicais na força do amor e do perdão incondicional. É uma clarissa autêntica que soube crer no Amor (1Jo 4,16).
Esta genuína filha de Santa Clara se deixou ferir pelo amor de Cristo, ao qual ela se deu totalmente com impulso apaixonado e exclusivo, fiel e incondicional, capaz de amar os inimigos e de enfrentar com extraordinária fortaleza as duríssimas provas que marcaram a sua vida.
Uma luz para a Igreja
Camila Batista – seguindo o exemplo e o ensinamento de Clara e Francisco – viveu uma fidelidade heroica à Igreja, mesmo quando deveu enfrentar, por ela, sofrimentos amaríssimos. Esta sua tenaz obediência se enraíza na consciência de que a Igreja é a própria imagem de Cristo, seu corpo vivo e sua concreta presença na história, dentro da qual se realiza eficazmente a obra da nossa salvação. Não houve compromisso ou fragilidade humana que conseguisse desviá-la do propósito de viver esta total pertença à Igreja: o sofrimento não a tornou rebelde, mas ainda mais fiel no oferecer orações e súplicas aflitas a Deus pela “renovação da igreja”.
Temos necessidade, também nós, sobretudo no nosso tempo, de redescobrir o gosto desta pertença eclesial que gera uma fecunda e universal comunhão em Cristo.
Também por este motivo, a canonização oferece Camila como modelo a todos os batizados e como exemplo de vida cristã: a sua luz é a da relação perseverante e apaixonada com Cristo crucificado, de uma martyria feita credível pela pobreza, de uma koinonia concretizada na fraternidade, de uma diakonia radicada na contemplação; uma luz autorizada, capaz de orientar todo caminho eclesial.
* Escolhendo professar a Regra de Clara de Assis, de fato, Camila Batista indica a cada cristão a via da pobreza como via de testemunho radical, como autêntica martyria: “Esta serva de Deus comprou caro para si e para os outros a pobreza, e somente a ela tocou pagar o preço; de modo que lhe custa caro a pobreza, mais que a riqueza aos ricos, e mais ela a desejou e buscou do que o mundo busca o dinheiro”.
* Vivendo plenamente o carisma franciscano, ela mostra à Igreja a via da fraternidade como atuação da koinonia: uma fraternidade que pede a renúncia ao poder e ao individualismo e chama a um amor gratuito, evangélico, generoso, a uma caridade crucifixa, semelhante à da Perfeita alegria de Francisco: “Ó meu clementíssimo Deus, se Tu me revelasses todos os segredos do teu sacratíssimo Coração e, cada dia, me mostrasses todas as hierarquias angélicas, se cada dia eu ressuscitasse os mortos, não crerei por isto que Tu me amas com infinito amor. Mas, quando eu sentir ter obtido a graça de um perfeito amor, isto é, de fazer bem a quem me faz mal, de dizer bem e louvar a quem sei que me diz o mal e injustamente me censura, somente então por este sinal infalível, meu Pai clementíssimo, crerei ser tua verdadeira filha. Somente então, serei conforme ao teu diletíssimo Filho Jesus Cristo Crucificado, que é o único bem da minha alma, conforme a ele, ó Pai, que, estando na cruz, orou a ti pelos que o crucificavam”.
* Herdeira exemplar de Clara de Assis, Camila oferece-nos a via da contemplação como real e específica diakonia. A Igreja inteira e cada batizado, mediante a contemplação, volta à sua fonte vital e desenvolve um ministério de intercessão: é este o serviço que Clara e Camila Batista desenvolveram, recordando-nos o primado de Deus e a misteriosa fecundidade apostólica da contemplação, destinada a incidir profundamente na vida da Igreja.
Uma luz para a família franciscana
Camila Batista manifesta-se como uma cristã capaz de viver com seriedade e intensidade a busca de Deus, radicando-se na experiência bíblica. Embora dotada de uma refinada e elevada formação cultural, o seu modo de ler a Escritura nunca assumiu o estilo de uma erudição árida. À luz da Palavra, relê o seu itinerário vocacional e toda a sua vida, servindo-se do modelo bíblico: os grandes acontecimentos da história da salvação estão na base da sua espiritualidade quase como profecias que se realizam.
Aproximando-nos de seus escritos, damo-nos conta de que a liturgia é o lugar privilegiado em que ela escuta a Palavra, alcançando aí a luz e a força para realizar as suas escolhas.
“Tu, Senhor, por graça nasceste na minha alma e me mostraste a via e a luz e lume da verdade para chegar a ti, verdadeiro paraíso. Nas trevas e escuridão do mundo, me deste a vista, o ouvir e o falar e o caminhar – pois que na verdade eu era cega, surda e muda – e me ressuscitaste em ti, verdadeira vida, que dás vida a cada coisa que tem vida”.
Camila Batista mostra-nos a via concreta para observar o santo Evangelho, para colocá-lo em prática e traduzi-lo na existência cotidiana. O voto de derramar a cada sexta-feira uma lágrima em memória da Paixão de Cristo, ao qual permanece tenazmente fiel mesmo imersa na vida da corte, testemunha-nos aquele envolvimento, aquela participação “física” e total ao mistério de Cristo que se torna relação viva e fecunda, segundo a mais genuína espiritualidade franciscana.
Na sociedade de hoje que favorece uma religiosidade intimista e frágil, reduzindo a fé a uma pulsão emotiva e desencarnada, Camila Batista sugere a toda a família franciscana uma via segura: viver o Evangelho com paixão e radicalidade e restituir “amor por amor, sangue por sangue, vida por vida”.
Somente assim poderemos ser uma presença significativa na Igreja e na história.
Conclusão
Com o anúncio desta “boa notícia”, não pretendo simplesmente notificar que uma nova Santa é acrescentada à árvore já viçosa do carisma franciscano-clariano, mas desejo assinalar sobretudo a fecundidade de uma vida vivida segundo o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. No evoluir da história e no constante empenho por renová-la, de fato, são exatamente “os santos, guiados pela luz de Deus – dizia Bento XVI na Audiência de 13 de janeiro de 2010 – os autênticos reformadores da vida da Igreja e da sociedade. Mestres com a palavra e testemunhas com o exemplo, eles sabem promover uma renovação eclesial estável e profunda, porque eles mesmos são profundamente renovados, estão em contato com a verdadeira novidade: a presença de Deus no mundo. Esta consoladora realidade – de que em cada geração nascem santos e trazem a criatividade da renovação – acompanha constantemente a história da Igreja em meio às tristezas e aos aspectos negativos do seu caminho. Vemos, de fato, século após século, nascerem também as forças da reforma e da renovação, porque a novidade de Deus é inexorável e dá sempre nova força para andar adiante”.
Caros irmãos e irmãs, eu gostaria de deixar-lhes dois pensamentos de Camila Batista que me marcaram de modo particular. Comentando as grandes tentações vividas, teria depois escrito com convicção: “Bem-aventurada aquela criatura que por nenhuma tentação deixa o bem começado!”. De outra parte, crescida na espiritualidade da restituição tão cara a Francisco, Camila rezava: “Faze com que eu te restitua amor por amor, sangue por sangue, vida por vida”. Tudo um exemplo de fidelidade e de perseverança no bem e do viver na lógica do dom total de si mesma àquele que a amou por primeiro.
Irmãos e irmãs, sejamos santos como ele é santo! A santidade é a vocação mais alta à qual pode tender um homem, uma mulher. A santidade é a nossa vocação.
Seu irmão, Ministro e servo
FR. JOSÉ RODRÍGUEZ CARBALLO
Ministro geral
Camerino, 5 de julho de 2010
FR. JOSÉ RODRÍGUEZ CARBALLO
Ministro geral
Camerino, 5 de julho de 2010
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