Chegou a noite. Noite velha, todos dormem no palácio. Clara esperou aquela hora segura, com receio de que lhes estorvassem os propósitos. Dirigiu-se a uma porta escusa, a “porta dos mortos” que só se abria quando alguém morria em casa, para por ela sair o enterro; arredou as pesadas batentes e a pedra que as escorava, e com Pacífica de Guelfúccio meteu ao escuro da noite em direção à Porciúncula (Fernando Felix Lopes, O Poverello São Francisco de Assis, Braga, p. 226).
1. Assim, Fernando Felix Lopes descreve a “fuga” noturna de Clara com o jeito português com que esse autor escreve. Essa seria uma primeiríssima etapa de suas andanças, da peregrina Chiara dos Favarone e Offreduccio. A aventura, sim literalmente a aventura, começa no Domingo de Ramos de 1212. Uma mulher muito jovem, filha da aristocracia, chamada Clara e um rapaz cheio de zelo e de fogo, Francesco, esse Francesco que vive para sempre porque para sempre está grudado ao Evangelho, foram os protagonistas desta aventura. Uma menina, filha de mãe piedosa e firme, mulher das peregrinações, mulher forte. Ortolana teve papel importante na decisão de Clara. Sua filha, menina iluminada, era feita para coisas diferentes. Ortolona não era ingênua. Sabia muito bem disto. As coisas pareciam maduras. Estava na hora da saída... de sair para caminhar como Abraão que devia deixar tudo... e caminhar sem mapa na mão para uma terra que Deus haveria de lhe mostrar.
2. Clara “estava firmemente decidida a imitar o exemplo de Francisco e de seus frades, ainda que a sua resolução lhe exigisse os mais árduos sacrifícios. Na quaresma de 1212, a esposa escuta a voz do amado que a chama ao deserto. Claire-Pascale Janet (Sainte Clare d’Assise, Fayard 1989) escreve uma biografia da santa como se Clara estivesse escrevendo seu diário. Era 18 de março de 1212 (segundo a autora): “Está decidido. Como fazer esperar mais ainda aquele que se me entregou totalmente? Nessa caminhada da Quaresma ouço a sugestão que me faz: “Vem, eu vou te levar ao deserto para falar ao teu coração, e tu me responderás com todo o teu ser, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Sinto como que uma queimadura o amor que levou Francisco de ruptura em ruptura. Eis o que procuro: a pobreza de Cristo. Um caminho novo se abre diante de meus passos” (p. 52).
3. Um caminho novo... da Porciúncula para São Paulo das Abadessas, para Santo Angelo de Panzo, para São Damião... Mas esses deslocamentos exteriores não são os mais significativos... Na exiguidade dos espaços de São Damião foi preciso caminhar interiormente para enxergar a terra das promessas.... acompanhar com o coração os frades pelo mundo, refletir e pesar esse desejo de ir pelo mundo afora.... viver a tristeza da perda de Francisco... ter vontade de morrer nas missões.... Nunca parar, sempre estar em estado de êxodo... como as irmãs clarissas de hoje, na fidelidade ao passado, saberão mostrar ao mundo inteiro a força daquela noite de Ramos de 1212. Sempre caminhando na direção de um mundo novo, nada de mesmice, de fixismo, de imobilismo.
4. “Impossível advertir minha família. Quando Rufino, meu primo, se juntou ao grupo de Francisco já foi um drama. A única maneira é fazer com que os meus sejam colocados diante do fato consumado. Não sou insensível ao sofrimento deles, mas a realização da vontade de Deus se paga com este preço. O bispo Guido já está a par e Francisco me mandou sua bênção. Tudo se fará nos umbrais da Grande Semana, quando Cristo tornou se rosto duro como uma pedra para subir a Jerusalém e entrar livremente em sua Paixão” ( Claire-Pascale, op.cit., p. 52).
5. O que aconteceu durante aquele dia? Joaquim Capela, OFM , no seu Santa Clara de Assis (Braga, 1949) assim descreve a cena: “Chegado que foi esse dia, Clara adornando-se dos seus mais preciosos vestidos por ordem de Francisco, dirigiu-se à Catedral de São Rufino na companhia da família para assistir a cerimônia da bênção e da distribuição dos ramos. O templo estava repleto de fiéis, e no meio do burburinho próprio da ocasião, ela, conservando-se recolhida e concentrada em um canto, parecia alheada a tudo o que se passava em torno. No momento da distribuição dos ramos, todos se levantaram para receber o seu, menos Clara que continuava em profunda meditação, como se não prestasse a mínima atenção ao ato que estava realizando, e não se moveu de seu lugar. Com grande admiração dos assistentes, o bispo desceu os degraus do altar e foi colocar na mão da donzela uma linda palma. Esta ação do prelado deixa perceber que ele estaria ao corrente do que ia se passar. Quis dar à filha de Ortolona aquela distinção para a animar no seu generoso propósito” (p.52).
6. Aquele dia parecia interminável para Clara. Era preciso esperar a noite, a grande noite chegar. “Noite velha...”, no dizer de Fernando Felix Lopes. “Altas horas da noite, quando no palácio de Favarone já todos estavam recolhidos, Clara saiu ocultamente com sua amiga Guelfuccio em direção a Santa Maria dos Anjos. Com receio de ser pressentida não quis sair pela porta principal. Havia uma outra porta traseira, tapada com pedras e toras de madeira, e foi por ela que a jovem escapuliu, depois de conseguir abri-la à custa de muito esforço” (Capela, 52-53). O autor, em nota de rodapé, faz duas observações. Do processo da canonização de Clara depreende-se que foi Bona de Guelfuccio que a acompanhou na fuga, mas provavelmente Filipa de Guelfuccio, também muito amiga e confidente de Clara e que poucos anos depois se lhe juntou em São Damião. A segunda observação é a respeito da porta dos mortos. Na Úmbria era costume obstruir a porta por onde havia saído o cadáver de alguma pessoa da família de mau agouro voltar alguém a servir-se daquela porta.
7. Clara e sua amiga descem as ruas silenciosas na direção da Porciúncula. Lá naquela capela, os frades esperavam por Clara que iria ser vestida, faria sua profissão e tudo em pouco tempo nos umbrais da Semana Santa. Marco Bartoli é de parecer que Tomás de Celano, em sua Legenda de Santa Clara quer realçar uma celebração litúrgica no momento em que Clara chega a São Damião. Clara escolhe o mundo dos pobres, quer estar entre os mais abandonados como Cristo, seu amado e amado de Francisco. Padre Fernando Felix Lopes assim descreve a cena da chegada: “Àquela hora, os frades recolhidos em oração diante do retábulo da Virgem pedem para Clara a proteção de Deus: e, depois, saem com tochas nas mãos ao encontro da jovem donzela. Alumiada no candor de seus vestidos de gala, as sombras boleando-se nas copas do arvoredo de à beira do caminho, treme-lhe o coração naquele momento tão grande. E a nobre virgem entra na pobreza da Porciúncula, a fazer-se pobre. Rompe, comovido e devoto, o canto dos hinos e salmodia: também os frades sentem a grandeza nova de hora tão solene. Clara despoja-se dos seus vestidos ricos, e Francisco veste-lhe a túnica de burel áspero; igual a que vestiam os frades, ata-lhe à cintura uma corda, e com o rito costumado da consagração das virgens, corta-lhe as tranças fartas e cobre-lhe a cabeça com o véu branco e preto, de pano grosseiro” (Fernando Félix Lopes, p.227).
8. Marco Bartoli vendo no relato da Legenda de Tomás de Celano uma grande liturgia faz observações quem merecem nossa atenção. Não posso me privar ao dever e prazer de transcrever as linhas de Bartoli, pedindo desculpas pela longa citação (Clara de Assis, FFB/Vozes): “Todo o relato de Celano parece realçar a estrutura litúrgica. Clara, por determinação de Francisco, deveria se vestir “bela e elegantemente” , celebrar com toda a cidade a entrada de Jesus em Jerusalém, mas depois, à noite, abandonaria aquela alegria pelo despojamento de suas vestes, passando a seguir o Senhor que tinha visto a alegria da entrada gloriosa em Jerusalém na dor da via crucis (...). Quem preparou esta “fuga litúrgica” foi sem dúvida o próprio Francisco. Foi ele que, com suas mãos, cortou os cabelos de Clara e, com isto, consagrou-a ao Senhor. Não resta dúvida que se tratava de um gesto litúrgico. Poderia pairar uma certa dúvida pelo fato de que a legenda não use a palavra tonsura, termo técnico com o qual se indicava o corte de cabelo na cerimônia de consagração das virgens. O termo, no entanto, é até usado na bula de canonização Clara claris praeclara: Et ipso beato Francisco sacra ibi recepta tonsura ... (e depois de ter recebido a tonsura do mesmo bem-aventurado Francisco). Talvez Tomás de Celano não tenha querido dar realce à tonsura realizada por Francisco naquela noite de Domingo de Ramos, por estar plenamente consciente da excepcionalidade de semelhante gesto. Clara não era uma jovem que estava sendo encaminhada por seus pais à vida monástica.. Era uma moça que tinha fugido de casa, indo ao encontro do desprezo e da desaprovação de todos. Francisco não era bispo - a quem normalmente era reservada a consagração das virgens – e nem mesmo sacerdote. E, apesar disso, se arrogou o direito, como um simples leigo de consagrar Clara ao Senhor. É evidente o alcance extraordinário do gesto de Clara e da escolha que com ela fez Francisco, com respeito aos costumes da época. Pra realçar tudo isso, Francisco quis dar a esta fuga um valor litúrgico. Pode-se até dizer que até “inventou” uma nova liturgia para acolher dignamente Clara em nome do Senhor. Uma tal liturgia que abarcava o arco de todo um dia e era a expressão da criatividade religiosa do santo inventor da liturgia do presépio em Greccio (p.60).
9. E assim terminavam as horas daquele extraordinário domingo de Ramos em que Clara renunciava a tudo, mudava de categoria social, vestia-se dos trajes da pobreza e professava o seguimento do Cristo pobre e apaixonante. Que caminhos lhe seriam abertos? Que surpresas em cada curva da estrada? Isso não lhe competia dizer. Ela sabia em quem havia confiado. Que caminhos novos ou velhos trilharão as clarissas? O que a Igreja precisa delas neste mundo de indiferença, pluralismo confuso, individualismo? Tinha chegado e já ia passando a noite em que Clara se tinha embrenhado no escuro rumo à Porciúncula. E disto comemoramos 800 anos...
Fonte: http://www.franciscanos.org.br/v3/carisma/especiais/2011/staclara/14.php